Sabe um desses dias que você não sabe por que veio ao mundo? Pois bem, a vida é recheada desses dias estúpidos, que no momento não deveriam existir, mas que depois você pára, pensa e agradece por ter tido essa estranha oportunidade. Sim, chamo de oportunidade, pois muitas vezes, como no caso do dia que vou descrever a seguir, ele pode mudar sua vida! Para melhor ou para pior, vai depender da situação, mas de qualquer forma muda e o seu modo de pensar nunca mais será o mesmo.
Falo de um dia, em meados de 2002, talvez. Saio do trabalho praguejando as intempéries da vida profissional, aliás de uma vida profissional que me causava muitos dissabores, e resolvo afogar a insatisfação num boteco muito legal e peculiar que costumo frequentar. Vou direto para a Mercearia S.Pedro na Vila Madalena.
Já deviam ser umas 20h quando cheguei. Solitária por opção, pedi logo uma cerveja para começar. Tirei uma revista para ler como era de costume, lembro que tratava-se de uma "Caros Amigos", lia uma entrevista sobre um cara da PF Brasileira, agora não me lembro o nome, mas era bombástica, denúncias, sujeira, corrupção, enfim... tudo para levantar o meu humor.
Entre um copo e outro, levantei para fazer um xixi. Para quem não conhece a Mercearia S. Pedro, na estranha R. Rodésia, é um misto de boteco com mercearia mesmo. Você pode encontrar para comprar, iguarias como sabão em pó, papel higiênico, pasta de dente, vassouras; ou mesmo alugar bons filmes em DVD, comprar ótimos livros em suas bancarolas improvisadas entre as "gôndolas" e o balcão, lugar muuuito divertido. Voltando ao xixi, no caminho ao banheiro, passando pelas bancarolas de livros, um me chama a atenção pelo título. Na volta prometo parar para dar uma olhada com carinho.
Volto, páro diante do livro, "O Direito à Preguiça" (Paul Lafargue), com introdução da Marilena Chaui... não titubeio, pego e levo comigo para a mesa, aviso meu amigo garçon para anotar o livro na conta, troco de leitura imediatamente. Acho que não preciso explicar que os acontecimentos de merda do dia de trabalho foram o principal motivador da valiosa aquisição.
Esse texto mudou minha vida, pode parecer exagero, mas não, mudou meeesmo. Trata-se de um "Panfleto revolucionário escrito em 1880, publicado no jornal socialista L'Ègalitè, numa série de artigos." . Lafargue era genro de Marx (ele mesmo!) e morreu com data marcada cometendo suicídio, "antes que a impiedosa velhice,..., acabe por paralisar minhas energias e quebre minha vontade, fazendo de mim um peso para os outros e para mim mesmo."
Sou simpatizante de algumas idéias anarquistas, ainda que as considere utópicas nos dias de hoje, acredito que isso também tenha favorecido o gosto pela leitura. Em pouquíssimas palavras, e me perdoem os mais entendidos no assunto, Lafargue faz uma apologia ao ócio, muito antes de "De Masi" e muito menos politicamente correto. Não vou aqui expor o conteúdo do livro, pois devo instigar a curiosidade de todos para lê-lo em sua íntegra.
O fato é que desse dia em diante, e mais ainda, desde o dia em que concluí a leitura do simbólico livro, tive certeza que não nasci para o trabalho. Confesso que já tinha percebido essa minha inclinação, mas por motivos de força maior, não conseguia admitir o delito moral.
Consegui distinguir, a duras penas, a diferença entre TRABALHO e trabalho. O TRABALHO é aquele que se faz com satisfação e que não necessariamente está ligado à recompensa financeira. Felizes os que conseguem realizar um TRABALHO com recompensa financeira! Já o trabalho, é aquela atividade que você realiza diariamente, muitas vezes contrariado, em troca de uma imoral contribuição financeira, e que no final do mês, você descobre que te custou muito mais do que o dinheiro depositado em sua conta bancária - sangue, suor e lágrimas.
Bom ou ruim? Ainda não sei... Pago todo dia o preço dessa "consciência" ou dessa "visão crítica", umas vezes rindo e outras chorando, mas sempre tendo a certeza de que trabalho é trabalho, e que "promessas" são ilusões, "benefícios" são obrigações, "festas" são aparências, "cargo" é nada, "salário" é ajuda de custo e tudo o mais um conjunto de pegadinhas para disfarçar o "pelouroinho" ao qual você certamente será submetido.
Para a informação do leitor, estou desempregada e hoje depois de longos meses em branco, fui fazer uma entrevista coletiva. Foi lá que toda essa "consciência" denovo veio à tona, ao me deparar, uma vez mais, com o circo da mediocridade corporativa que assola o mundo. Ao me deparar com um círculo com mais de 15 mulheres, todas voluntariamente uniformizadas de terninho preto e salto-alto. Ao ser submetida a perguntas capciosas e constrangedoras, de cunho preconceituoso. Ao ouvir comentários irrelevantes a respeito de coisas mais irrelevantes ainda, em tom glamoroso, subjulgando a inteligência de todas nós. Ao ouvir 15 histórias profissionais diferentes, e pensar que é impossível guardar ou assimilar qualquer impressão em 5 minutos mal falados e pressionados...
Coitadas de nós... que estivemos alí naquele lugar... Coitada até mesmo daquela que for contratada, o que se esperar?
Enfim... o preço do trabalho.
Para finalizar e ilustrar a reflexão, incluo um trecho do livro citado:
"Uma vez que o vício do trabalho está diabolicamente ancorado nos corações dos operários: uma vez que suas exigências sufocam todos os outros isntintos da natureza; uma vez que a quantidade de trabalho exigida pela sociedade é necessariamente limitada pelo consumo e pela abundância de matéria-prima, por que devorar em seis meses o trabalho do ano todo?...Tendo assegurada sua porção cotidiana de trabalho, os operários já não terão inveja uns dos outros; já não brigarão para tirar o trabalho das mãos e o pão das bocas uns dos outros; e, então, não estando esgotados do corpo e da mente, começarão a praticar as virtudes da preguiça."
* Título emprestado de um filme maravilhoso do Ettore Scola, cujo tema vem coincidentemente a "calhar". Atuações preciosas de Marcello Mastroianni e Sofia Loren.
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