14 agosto 2007

Saudade do meu Avô...

"Alma"

É o nome do lugar onde se encontram esses pedaços perdidos de nós mesmos.
São partes do nosso corpo como as pernas, os braços, o coração.
Circulam em nosso sangue, estão misturadas com os nossos músculos.
Quando elas aparecem o corpo se comove, ri, chora...
Pra que serve elas?
Pra nada.
Não são ferramentas.
Não podem ser usadas.
São inúteis.
Elas aparecem por causa da saudade.
A alma é movida a saudade!
A alma não tem o menor interesse no futuro.
A saudade é uma coisa que fica andando pelo tempo passado à procura dos pedaços de nós mesmos que se perderam...

Rubem Alves

02 agosto 2007

Em Memória


Dia 24 de julho de 1919, na cidade de Pariquera Açu, Vale do Ribeira, sul do estado de São Paulo, nasce o menino Thadeu,moreno de olhos verdes, filho de Eva Zelinski e Theodoro Sosnowski, imigrantes poloneses.

O pai, Theodoro Sowsnowski, era um homem muito culto, filho de aristocratas poloneses de Warsóvia e que tinha ido estudar nos EUA, pelo que parece o então jovem pouco estudou mas muito esbanjou e aproveitou a boêmia em terras norte-americanas . Uma vez iniciada a 1ª Guerra Mundial, Theodoro, foge dos EUA para a Am. do Sul, com medo da convocação à luta, vindo parar no Brasil, no Vale do Ribeira, onde se casa com Eva. Sobre a família de Eva, pouco se sabe...

Thadeu, era o terceiro filho, seria o do meio pois ainda viriam mais 2 meninas que formariam portanto essa grande família de 5 filhos, que pela ordem eram:
Casimiro, Maria, Thadeu, Joana e Eugênia Sosnowski.

O menino Thadeu, ficou lá no Vale do Ribeira mais ou menos até seus 5 anos de vida, quando a família decidiu vir para São Paulo, fugir da miséria daquela região, que até hoje é a mais pobre do estado.
A família foi até Iguape e lá pegaram um navio que os deixaria no porto e Santos, de onde subiram para a capital de trem.

Ao chegarem na capital, instalaram-se no “Bairro do Anastácio”, que era uma colônia de imigrantes do Leste Europeu, com famílias de Húngaros, Poloneses, Armênios, Tchecos, Russos, etc.

O menino Thadeu, tinha o hábito de ler histórias em quadrinhos de ficção científica do jornal de seu pai, que após terminar sua leitura, carinhosamente passava à vez ao menino curioso.

Esse é o começo da história de meu avô, “Seu” Thadeu, que viveu por 88 anos.

Meu vô dizia que lá no “Anastácio” ele morava numa “habitação coletiva”, vulgarmente conhecida como “cortiço” , a vida era muito dura, muito trabalho e pouco dinheiro. O pai, Theodoro, era alcoólatra e morreria muito cedo de cirrose, mas apesar das dificuldades, a família se manteve unida e lutando.
O jovem Thadeu vem a se tornar um craque no futebol com típicas pernas tortas, em seu tempo de jogador, faz muitas amizades que durariam a vida toda.
Reza a lenda, que também era boêmio e namorador, sempre galante, alinhado, de terno, chapéu, pele morena e grandes olhos verdes.

Eis que num dado momento conhece a “Dona” Mathilde e, aos 28 anos, em 1947, resolvem se casar. Daí começa a nossa família da forma como ela se configura hoje. Deste casamento nascem os filhos Darcio e Darcy, com apenas 15 meses de diferença. Desses filhos casados, nasceram os 6 netos e de 2 dos netos mais 2 bisnetos, sendo que de um casal nos tornamos quase 20 pessoas!

Eu sou a neta mais velha do “Seu” Thadeu, tenho 34 anos e fui criada muito próxima aos meus avós, os 4 sempre estiveram perto de mim e tenho imensas e deliciosas recordações de todos eles.
Me sinto realmente privilegiada por ter tido e ainda ter esse valioso contato.

Mas com meu avô Thadeu a coisa era diferente... ele foi e sempre será minha fonte de inspiração, meu herói maior, meu ídolo, minha referência de vida.

Um avô do qual eu guardo imagens míticas: o piadista, tomador de cerveja, cuidador das plantas, palmeirense, apreciador de boa música, amante da leitura, leitor de jornal, o negociante, o teimoso... tantas figuras numa só!

Emanava afeto pelos poros, minhas recordações são tantas mas as palavras não bastam para descrevê-las, pois são mais do que fatos, são imagens e emoções, são indescritíveis.

Quanto valeria um papo de 20 minutos falando do passado? Ou mesmo do presente? Nada que eu pudesse mensurar com números ou descrever com palavras... algo intangível que só poderia ser sentido com o olhar, o colorido dos rostos, o calor do tocar das mãos, o tom das palavras ditas, os movimentos do corpo...

Como descrever o sabor de uma laranjada feita por ele ou uma fruta descascada por ele? tudo muito além do paladar, totalmente afeto...

Como recusar um bolo ou uma garrafa de vinho ou groselha dados por ele? Em todas essas coisa há muito mais do que o que elas são, há um elemento emocional, uma disponibilidade para o dar que representa um conjunto complexo de afeições...

Poderia uma bisneta receber melhor presente de 1 ano do que uma maravilhosa salada de frutas feita pelas mãos do bisavô orgulhoso? Qual seria então o valor “calórico” daquelas frutas? Quanto não receberam as pessoas que dela comeram? A sábia energia de suas mãos, o calor de seu coração e toda a sua gentileza em preparar o alimento com todo carinho... o sabor ficou muito melhor, tenho certeza!

Os inúmeros saberes, que me foram transmitidos pelo meu avô, são riquezas pessoais de valor inestimável, são como tesouros que vou guardar para sempre e que vou procurar transmitir a outros, assim como ele fez, tentando deixar minhas marcas pessoais assim como ele me deixou as dele. Esses saberes, muitas vezes simples se tornam complexos diante da infinidade de valores afetivos que permeiam sua transmissão.

São esses mesmos valores que preenchiam nossas longas conversas, onde a atenção e o respeito pela opinião do outro sempre foram mantidos de forma muito tranqüila e natural, onde ambos, declaradamente, tirávamos lições e reflexões... eram durante essas conversas que eu me sentia cada vez mais apaixonada pelo meu avô, pela sua pessoa, pelo seu pensamento, pela sua sabedoria vivida e experimentada.

Jamais poderei esquecer momentos simples como um banho de mar em sua companhia em Mongaguá; uma fruta tirada do pé de seu quintal, uma visita ao museu da FAAP em sua companhia; as aulas de direção; o leite quente no copo de manhã me esperando quando ia muito cedo para o colégio ou o pão quente do lanche da tarde; todas as festas nas quais estivemos juntos; os inúmeros copos de caipirinha e cerveja; os jogos de vôlei no quintal da praia; as aulas de bicicleta; sua bela letra cursiva; as fantásticas brincadeiras no quintal; aquela bela máquina de escrever antiga da sua casa na qual eu brincava de ser gente grande; a música característica de um período da infância, quando eu ouvia Roberto Carlos e Julio Iglesias na sua casa; as farras de fanta-uva no bar vazio da Vila Souza; ele me balançando e cantando a “música-da-barata” em baixo do chapéu de sol na casa da praia; nossas cestas juntos e suas incríveis histórias para dormir; os lanches de misto-quente na chapa às sextas-feiras; seu conselho sobre viajar para o Egito; seu apoio para eu comprar meu primeiro carro; sua reação “bizarra” quando soube da minha gravidez; suas piadas; sua eterna corujisse com netos e pior ainda com bisnetos...

Todas essas recordações e muitas mais, estão aqui comigo, vivas na minha mente e em meu coração.
O corpo do Vô Thadeu se foi para sempre, mas tudo o que ele representa, criou, pensou, moldou continua presente na família.
O tangível e o intangível da morte formam um cruel paradoxo:
O que é o corpo sem o brilho do espírito? O que é o espírito sem o corpo que materializa suas ações? O que seria da vida se não houvessem as memórias? E por quê as memórias não se bastam sem as pessoas suas agentes?

Vô, quanto não daria para ter isso novamente... sua mão áspera e forte pegando na minha mão e passando todo o calor e as emoções sobre as quais escrevi, pegar na sua mão e sentir você pegando na minha... como isso era bom... como vou sentir saudades!

Com muito amor,
Sua neta mais velha.